A POLIFARMÁCIA NO IDOSO COM DOR E O CAMINHO PARA SUA RACIONALIZAÇÃO
Por: Dra. Karol Thé
Coordenadora do Comitê de Dor no Idoso
Geriatra
São Paulo/SP
Abril/2020
O envelhecimento é um fenômeno mundial e vem ocorrendo de forma acelerada e sem precedentes. Atualmente, os individuos idosos representam 9% da população brasileira e esse número deverá dobrar nas próximas duas décadas. O Brasil deverá ser a sexta maior população de idosos em todo o mundo em 2025.
O avançar da idade é acompanhado do aumento do número de doenças crônicas e muitas dessas estão associadas à dor. Nos ambulatórios médicos, a queixa de dor está presente em 73% dos idosos, sendo que 50 a 60% ficam parcial ou totalmente incapacitados de forma transitória ou permanente.
Todos os guidelines de manejo da dor no Idoso trazem atenção especial à polifarmácia, que representa uma verdadeira epidemia nessa população. Aproximadamente 30% dos adultos acima de 65 anos vivendo em paises desenvolvidos ingerem cinco ou mais medicamentos.
A prevalência de polifarmácia nos Estados Unidos é de 14,5%. De todas as prescrições medicamentosas, 33% são dispensadas aos individuos idosos, sendo que a expectativa é que essa proporção aumente para 50% nas próximas duas decadas. No Canadá, dois terços dos idosos usam mais de cinco medicamentos e um quarto utilizam mais de 10 medicamentos em suas prescrições.
No Brasil, um estudo transversal no municipio de São Paulo com 1.115 idosos demonstrou a prevalência de polifarmacia de 36%. Nesse mesmo estudo, os analgesicos simples (paracetamol e dipirona) e anti-inflamatorios não-hormonais estão entre os 20 medicamentos mais utilizados entre os idosos usuários de polifarmácia (cinco ou mais medicamentos).
Um estudo populacional que avaliou a polifarmacia e multimorbidade com 9.019 idosos no Brasil identificou que 15,6% dos homens e 20,1% da mulheres, faziam uso de 5 ou mais medicamentos diariamente. A distribuição da polifarmácia é bastante desigual nas diferentes regiões do país, sendo muito mais prevalente na região sul, com 25,1%, do que na região norte com 3,4% dos entrevistados acima de 60 anos.
No que tange ao tratamento medicamentoso da dor no idoso, o manejo da polifarmacia racional é um desafio complexo para o profissional da saude. O idoso é especialmente mais susceptivel à efeito adverso a droga e à interação medicamentosa e isso se deve especialmente às alterações farmacológicas e farmacocinéticas relacionadas ao processo natural do envelhecimento e a complexidade do regime terapêutico vigente.
Efeito adverso à droga (EAD) é a injúria resultante do uso de uma medicação no funcionamento biológico do individuo e decorre da interação droga-droga e droga-doença. A prevalência ocorre em 58%, com até cinco drogas, até 82%, acima de sete drogas. A reação adversa à droga gera um circulo vicioso iatrogênico, também denominado cascata farmacoiatrogênica, que ocorre quando um efeito adverso de uma droga é interpretada erroneamente como uma nova morbidade e o resultado é a prescrição de uma nova medicação, adicionada aquela vigente. Esse efeito conduz uma ação em cascata, onde mais drogas são usadas com o objetivo de tratamento de um efeito adverso.
Interação medicamentosa ocorre quando o efeito e/ou toxicidade de um farmaco é alterado pela presença de outro, podendo ser benéfica (aumento da eficácia) ou malefica (redução da eficácia). Sua prevalência aumenta exponencialmente com o número de medicações prescritas.
A polifarmácia reduz a aderência ao tratamento, aumenta hopitalizações evitáveis e os custos do tratamento para o paciente. Somado a isso, eleva o onus do sistema de saude e o risco de desenvolvimento de sindromes geriatricas, como a desnutrição, quedas, incontinência urinária e deficit cognitivo.
Os fatores de risco para polifarmácia são aqueles relacionados ao paciente e os relacionados ao sistema de saúde. Os fatores relacionados ao paciente são dependentes da reserva funcional, fisiológica e cognitiva do idoso, como: idade acima de 85 anos, ser frágil, desnutrição, presença de seis ou mais doencas cronicas, presença de deficit cognitivo, nove ou mais medicações prescritas ou doses contadas, doze ou mais medicações diárias, deficit de função renal (Cl creatinina < 50ml/min) e a presença de EAD prévio. Os fatores relacionados ao sistema de saúde são a presença de prescrição múltiplas, uso de multiplas farmácias para a compra de medicações, lista de medicamentos não revisados pelo profissional de saúde, comunicação pobre entre os prescritores e o regime de prescrição complexo.
A promoção da polifarmácia racional pode ser alcançada através da realização da conciliação medicamentosa a cada consulta com atenção permanente à novas inclusões, acrescentar ao regime atual uma droga por vez e sempre iniciar as medicações em baixas doses. Ainda, sempre que possivel tentar a deprescrição, dando atenção a revisão sistemática e dinâmica das metas de cuidado e plano de tratamento, que podem ser alterados de acordo com a expectativa de vida e o avançar de uma doenca crônica. Ainda, uma boa estratégia é sempre dar preferencia as medidas não-farmacológicas a fim de reduzir a polifarmacia.
A polifarmácia é uma preocupação crescente também das autoridades constituídas e no Brasil não seria diferente. Foi publicado em 2016 os resultados da Pesquisa Nacional sobre o Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM) no Brasil. A pesquisa envolveu 41.433 pessoas e traz um resultado alarmante no que diz respeito aos medicamentos para dor tomados pelas pessoas pesquisadas nos últimos 15 dias que precederam a pesquisa. Mais da metade dos medicamentos para dor tomados não haviam sido prescritos por médicos ou outros profissionais de saúde. Adicionalmente, vale pontuar que 79% daqueles que tomaram algum medicamento para dor pagaram pelo próprio medicamento, ou seja, ele não foi distribuído pelo SUS, o que dificulta o controle da polifarmácia a partir dos prontuários da esfera pública, ainda que já estivesse completamente implantado o prontuário eletrônico.
Além do governo, que instituiu o Comitê Nacional para a Promoção do Uso Racional de Medicamentos em 2007, e coordenou diversas iniciativas no sentido de promover continuamente esta racionalização no âmbito do SUS, as operadoras de saúde também têm passado a adotar paulatinamente um atendimento similar ao do SUS, centralizado em um médico de família ou um geriatra, para promover indiretamente este mesmo fim. Em se tratando do idoso, a partir do momento em que ele tenha um geriatra como ponto de contato contínuo que racionalize o encaminhamento à outros especialistas, este profissional poderá ser também o gerenciador principal da prescrição, evitando a polifarmácia inapropriada e suas consequencias.
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